Cheguei agora a pouco do tribunal. O juiz deu-me ganho de causa ao condenar Cícero, Heitor e Prático a trezentos mil reais por danos morais e materiais. Cem mil para cada um daqueles malditos porcos. Também quem manda colocar o meu nome na lama por tanto tempo, fazendo com que gerações e mais gerações aprendessem uma história repleta de mentiras absurdas sobre o que aconteceu naquela manhã de setembro.
Não nego que aprecio carne de porco. É um dos meus pratos prediletos, sobretudo se assado num fogão à lenha. Mas daí afirmar que eu queria comer aqueles três míseros porcos, isso já é demais. Primeiro porque o trio era muito amigo do meu filhote Wilber. Os quatro viviam brincando pelas redondezas, inclusive lá em casa, onde, se eu realmente quisesse, facilmente os teria devorado sem que ninguém soubesse.
Depois, porque o mais velho salvou a vida de um primo meu no verão passado, quando tentava atravessar a nado uma represa aqui perto. A partir daí fiquei amigo dos irmãos porcos, pelo menos até o dia em que inventaram aquela história de que eu tentei invadir suas casas para almoçá-los. Os autos do processo da ação indenizatória que ajuizei contra eles mostram outra versão dos fatos. Senão, vejamos.
Morávamos todos próximos uns dos outros, numa clareira localizada no extremo norte da Floresta Azul. Após três semanas sem chover na região, o verde da mata começou a dar lugar a uma folhagem seca, que, a qualquer sinal de fogo, poderia desencadear um incêndio devastador.
Preocupado com a situação, resolvi estocar água e comida que fossem o suficiente para mim e meus filhotes passarmos, no mínimo, três meses sem sair de casa. Ainda tive a iniciativa de ajudar alguns vizinhos a fazer o mesmo, sobretudo os jabutis e as preguiças, por razões óbvias.
E não deu outra. Um homem vindo da cidade andou cá por estas bandas, deixando cair da janela do seu possante (adivinha!) uma ponta de cigarro acessa. Algumas horas depois o fogo começou a tomar conta da parte leste da Floresta, matando tudo que era tipo de planta e bicho.
Após uma hora, o incêndio chegou ao sul onde felizmente já estávamos de sobreaviso. Fui um dos primeiros a avistar a fumaça aproximando-se de nossas cabeças. Para piorar, o vento soprava barbaridade, ajudando a espalhar as chamas. Então resolvi ir de porta em porta avisar aos meus vizinhos da catástrofe que estava prestes a acontecer.
Tudo ia relativamente bem, até que, por infelicidade minha, resolvi bater na porta de Heitor. Não sei por cargas d’água, ao me ver pela fresta da porta, o porco mais novo e mais preguiçoso dos três começou a gritar. Para completar, a ventania que servia de combustível para o incêndio (e não o meu assopro que mal apaga vela de aniversário) abalou a frágil estrutura da sua casa, feita, a contragosto do irmão Prático, de palha, fazendo com que o leitão saísse correndo como um louco até a casa de Cícero, seu irmão mais novo.
Não percebi, entretanto, que aquela gritaria tivesse sido originada em razão da minha presença. Assim, corri atrás de Heitor, indo bater na porta do outro porco, pedindo – vejam só quanta ingenuidade de minha parte – para que procurassem um outro abrigo. Também ali o vento bateu forte, derrubando metade da casa de tábua em que se escondiam. Assustados, saíram em disparada até a sólida residência de Prático, o porco mais inteligente da família.
Dando-me por vencido, resolvi voltar para minha toca, a fim de preparar meu filhote para fugir dali o quanto antes, quando, de repente, vi um lobo, ao que parecia bastante jovem, na casa de Prático, junto aos irmãos porcos. Imediatamente pensei: “Meu Deus! Wilber está aí dentro correndo perigo. Preciso fazer alguma coisa antes que seja tarde demais!”.
Desesperado, bati na porta da casa de Prático com toda a minha força, sem saber que os malditos porcos estavam também desesperados com a minha presença. Impedido de entrar para pegar meu filhote, resolvi dá uma de Papai Noel. Com muito esforço – já não era mais aquele jovem de outrora – subi telhado acima, para, em seguida, descer cuidadosamente pela chaminé da casa.
Acontece que os danados dos leitões colocaram um imenso caldeirão fervendo bem na descida da chaminé, onde eu caí e, por pouco, não morri afogado. Em seguida, com o couro pegando fogo, saí correndo feito um maluco porta a fora, gritando e pedindo por socorro. A dor era tanta que só me lembro de ter olhado de soslaio a procura do meu filho e ter encontrado, para alívio meu, apenas um lobo de pelúcia.
Minutos depois reencontrei Wilber, em nossa toca, chorando pela minha ausência. O fogo já havia se alastrado floresta adentro e estava a poucos metros de onde estávamos. Mesmo sem condições físicas, consegui colocar meu “bambino” nas costas (só de pensar me arrepio da dor que senti) e saí atrás de um lugar seguro.
Esse foi o maior incêndio da história da Floresta Azul. A fauna e a flora do local ficou em ruína. Das casas existentes, apenas uma ficou de pé: a do porco Prático. Graças a sua estrutura bem reforçada, ela continuou quase que inabalável depois do desastre. Temo, entretanto, que o seu dono tenha de vendê-la para pagar a indenização que ganhei na Justiça pelos danos suportados por mim e, principalmente, pelo meu filhote.
Hoje, cego e entrevado numa cadeira de rodas, não guardo qualquer mágoa dos três irmãos porcos. Nem fico triste quando ouço os adultos contando erroneamente a história que acabei de narrar. Só não gosto de ser chamado de “Lobo Mau”, já que eu nunca tive maldade em meu coração nem nas minhas atitudes. Como disse ao juiz na audiência, o ruim dessa história não sou eu nem os porcos que quase acabaram com a minha vida. Afinal de contas, não somos nós que colocamos fogo em nossas matas, destruindo frágeis ecossistemas, seja por descuido, como foi o presente caso, ou pelo dinheiro, como o é na maioria das vezes.